domingo, 29 de março de 2009

PRIMAVERA... Estação das Flores... dos Amores... e dos Perfumes...


PRIMAVERA
(Cecília Meireles)
A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.
Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododentros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.
Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.
Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvi­dos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.
Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.
Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.
Texto do livro: "Cecília Meireles - Obra em Prosa - Volume 1", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1998.

SABIÁ E O URUBU (MONTEIRO LOBATO)


Era à tardinha. Morria o sol no horizonte enquanto as sombras se alongavam na terra.Um sabiá cantava e tão lindo cantava que até as laranjeiras pareciam absortas a escutar. Estorce-se de inveja o urubu, e queixa-se:

- Mal abre o bico este passarinho e o mundo se enleva. Eu, entretanto, sou um espantalho de que todos fogem com repugnância... Se ele chega, tudo se alegra. Se me aproximo, recuam... Ele, dizem, traz felicidade; eu mau agouro... A natureza foi injusta e cruel para comigo. Mas está em mim corrigir a natureza; mato-o, e desse modo, me livro da raiva que seus gorjeios me provocam. Pensando assim, aproximou-se o urubu do cantor que, ao vê-lo, armou as asas para fuga.

- Não tenhas medo, amigo! Vim para mais perto, a fim de melhor gozar as delícias do teu canto. Julgas acaso que por ser urubu não dou valor à obras de arte? Vamos lá, canta! Canta ao pé de mim aquela formosa melodia com que há pouco extasiavas a natureza.O ingênuo sabiá deu crédito àqueles mentirosos grasnos e permitiu que lhe pousasse ao lado o traiçoeiro urubu. Mas este, logo que pilha a cantar ao alcance, ferra-lhe tamanha bicada que o derriba, moribundo. Arquejante, com os olhos já envidrados, geme o passarinho:

- Que mal te fiz para merecer tanta ferocidade?

- Que mal me fizeste? É boa! Cantaste! ... Cantaste divinamente bem, como nunca urubu nenhum há de cantar.

Ter talento: eis o teu crime. A inveja não admite o mérito.
http://lh5.ggpht.com/_xOeA57y6rsA/SUPjX_j-ChI/AAAAAAAAGDE/JR758IQmhJ4/7035.gif.jpg